A mesma, no entanto outra
O tempo passa e nos modifica. Muda por onde andamos, como falamos, olhamos para as coisas e para o mundo. Há momentos em que quase não nos reconhecemos, por dentro e por fora. Ainda assim, algo permanece. Uma sensação de continuidade, de que seguimos sendo feitos das mesmas histórias que nos formaram, ainda que contadas de outro jeito.
“A mesma, no entanto outra.”
Essa frase sempre me atravessa. Porque é exatamente assim que me sinto quando olho para trás: já fui muitas, mas sigo sendo uma só. Um corpo só, uma história que continua, mesmo com mudanças no percurso.
A memória, nesse processo, tem um papel especial. Ela não é um arquivo fiel. Está sempre misturada com o que imaginamos, com o que desejamos ou tememos. No livro Ressuscitar mamutes, Silvana Tavano nos diz: “A memória é colorida pela invenção. Encobrimos o que se apagou com os tons da imaginação (…)” Às vezes, percebo que lembro mais pelo afeto do que pelo fato e isso altera tudo: pessoas, lugares, cenas importantes ou triviais ganham outra textura com o tempo. Mudam de cor conforme eu também mudo. (Adoro tomar Redbull com gelo por causa de uma memória de um momento muito especial em um festival de música com pessoas que adoro. Pode parecer bobo, simples, mas se torna grandioso aos olhos de quem mantém a lembrança.)
Ainda gosto das mesmas músicas que gostava há anos. Mas conheci tantas outras ao longo do caminho, e hoje também me reconheço nelas. Continuo rindo das mesmas piadas, mas já me entristecem coisas diferentes. É como se algumas partes em mim tivessem se expandido sem anular as anteriores. Uma grande amiga se casou recentemente, e ao falar sobre esse momento e os desejos que idealizava desde mais jovem sobre ele, ela disse algo que me tocou: “me mantive fiel a uns e mudei outros.” Talvez seja isso. Mudamos, crescemos, caminhamos mas, algo fica.
Há dias em que pode ser inevitável tentar alcançar uma imagem antiga de nós mesmos. Às vezes, ela vem como uma lembrança nítida; outras vezes, apenas como um contorno borrado. É estranho perceber que nem tudo se sustenta, que há nuances que se perderam. Mas, mesmo assim, sigamos buscando. Não para tentar voltar a ser quem éramos, mas para compreender como o que fomos nos levou até quem somos agora.
Somos feitos de muitas camadas. De passagens, de perdas, de versões anteriores de nós mesmos. A mudança pode ser perceptível, mas não apaga o que veio antes. Está tudo ali, de algum modo, ainda que refeito. E é nesse movimento entre o que permanece e o que muda que sigo tentando me reconhecer, outra, mas ainda assim a mesma.
♡ uma indicação de música: a banda australiana Parcels tocou no Lollapalooza esse ano e foi muito especial ouvir essa música, que eles lançaram recentemente, em um final de tarde, com muitas pessoas especiais e um céu lindo.
“Às vezes, percebo que lembro mais pelo afeto do que pelo fato e isso altera tudo” 🤍 que lindo, Maju! É libertador poder ser muitas, e, ainda assim, as mesmas🤍
Lindo lindo <3